(Mitsue Siqueira)

Era quarta-feira de manhã, ele tinha acabado de voltar da rua. Pouco antes de sair, me procurou para dar um abraço e um beijo. Sempre teve esse hábito engraçado de se despedir sem poupar afeto, mesmo quando fosse à rua rapidinho comprar algo que tivesse acabado de última hora. Respondi ao gesto com um sorriso e devolvi um abraço mais forte. Naquela manhã, ele tinha ido buscar areia para reabastecer a caixa dos nossos gatos.
Quando voltou, eu já estava resoluta. Não sei precisar minha aparência, mas me senti pálida como nunca. Com o coração batendo a mil, o nó da garganta me apertou a ponto de a dor ser insuportável; não consegui mais conter. Precisava chorar, então chorei. Copiosa e assustadoramente, sem a menor economia. “O que foi, meu amor? O que houve?”, a voz carinhosa perguntou enquanto ele se sentava ao meu lado. Estava assustado, preocupado, apavorado. Não consegui responder com nada além de mais choro.
“É por causa da gente, não é?”, constatou com relutância depois de alguns minutos. Fiz que sim com a cabeça e chorei ainda mais. “Sei que tem sido difícil, mas a gente vai conseguir superar”, argumentava cada vez mais inseguro. Mesmo em meio a tanto medo, passava a mão nas minhas costas tentando me acalmar, irremediavelmente afetuoso. Queimando minha garganta, as palavras finalmente saíram de mim: “Não. Não dá mais”.
Sustentando o maior peso que meus ombros carregaram em 29 anos de vida, levantei do sofá e avisei a ele que eu sairia de casa. Naquele momento, me senti violenta. A certeza brutal da minha decisão só fez escancarar a vulnerabilidade dele. Ainda chorando, me senti baixa, atroz, vil, truculenta e qualquer outro sinônimo ruim que se possa imaginar.
Lembrei de quando eu era criança. Quando me machucava, minha avó limpava minhas lesões e grudava curativos para proteger as feridas. Peles sensíveis sabem que retirar o curativo às vezes machuca mais do que a ferida original. Com todo cuidado do mundo, eu passava dias tentando desgrudar os curativos sem sentir dor, mas meus esforços eram vãos.
Passei anos tentando amenizar a dor até me dar conta de que era chegada a hora de arrancar o curativo. “Não consigo mais viver assim, não sou feliz. Tenho que ir embora”, verbalizei. Que aflição. Minha atitude trucidou meu marido, sei disso. Meu melhor amigo, meu parceiro de vida, sangrou diante de mim como a minha pele sangrava quando eu tentava arrancar curativos na infância. Meus olhos nunca viram tanta fragilidade. Uma tristeza crua se inaugurava em nós.
Por mais cuidado que se tenha, por mais gentileza que se aplique, certas ações são irreparavelmente brutais. Quis abraçá-lo, consolá-lo, pedir perdão por expor aquelas vulnerabilidades, mas a ideia de voltar atrás jamais me ocorreu. Ainda sofro por não poder estar com ele nesse momento, por não podermos enfrentar mais essa dificuldade juntos, mas me consolo repetindo as palavras da minha avó: deixa a pele respirar.
De fato, a pele da infância respirou e as feridas cicatrizaram. Ainda tenho marcas quase imperceptíveis, quem as vê hoje não imagina o quanto já me machucaram. Tirar curativos requer coragem, e curar-se requer espaço, distância. O curativo que protege é o mesmo que sufoca se ficar por muito tempo, é preciso sabedoria para arrancá-lo na hora certa. Só que não existe hora certa para causar dor. Não existe hora certa para fazer sangrar.
Entre apertos angustiantes no peito e uma dor horrível na cabeça, concretizei meu desejo de divórcio. Fechei os olhos, tomei coragem e arranquei o curativo. A pele ainda sangra, mas aprendi a lição amarga de que certos amores precisam de alívio. Não é fácil amar de longe, mas sei que é o caminho mais rápido para a cura. Vai cicatrizar, sei que vai. Enfim, deixo respirar.
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